sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Origami





O Origami, conto de André Telucazu Kondo,
vencedor do 5º. Concurso Contos do Tejuco
"Maria Adelina V. Cardoso e Gomes",
promovido pela ALAMI
- Academia de Letras Artes e Música de Ituiutaba.


Conto vencedor do
5.º Concurso Contos do Tijuco
Maria Adelina VieiraCardoso e Gomes



O origami
Autor: André Kondo

Não havia pessoa que não odiasse Masao em todo a Kushiro. Foi um alívio quando ele foi trancafiado em uma prisão e jogado em um canto esquecido da fria ilha de Hokkaido. Diziam que ele não merecia a pena de morte, porque a morte seria um presente demasiado generoso para um homem como ele. O que Masao merecia era sentir o frio penetrar em cada poro da sua gélida existência, até que seu coração congelasse a tal ponto, que se despedaçaria em milhares de farpas de gelo, que o rasgariam de dentro para fora.
Masao não tinha atenuantes para amenizar o duro julgamento popular. Sempre havia sido um homem detestável. Não gostava da companhia de pessoa alguma, sempre expulsando quem quer que fosse do seu convívio. Chutava os cães que cruzavam o seu caminho e jogava pedras nos pássaros. Inclusive no sagrado tsuru. Tentar matar a pedradas um inocente pássaro como o grou japonês, cuja crença lhe dá mil anos de vida, era um feito que coroava a sua maldade. Mas não foi por isso que ele foi preso...
Que pena deveria ser aplicada a quem mata o genro? Com certeza, um assassinato é um ato de maldade, mas e o assassinato de uma filha, o que é? Não há palavras que possam expressar o horror de um pai que mata a própria filha. Como último golpe, para que não restasse sombra de dúvida sobre a irrefutável maldade no coração de Masao, ele ainda tentou matar a pequena Naomi, sua netinha — uma inocente criança. Haveria alguma razão para perdoá-lo?
Nos bares de Kushiro, o assunto não poderia ser outro senão o famigerado Masao. Entre um gole de saquê quente e outro, cada um cuspia uma sentença para o demônio, em uma competição que tentava estabelecer a mais cruel das punições. Foi assim que, por mais estranho que pareça, o veredicto com a mais sádica das sentenças o condenava à vida. Deveria ser horrível viver assim, com um coração de monstro, suportando o veneno que circula pelo corpo, o gelo do coração, os tormentos da alma, a absoluta solidão. Viver sedento, sem uma única gota de bondade, deveria ser, de fato, a pior das punições.
Estabelecida a pena a cumprir, restava agora racionalizar o irracional. Entender os motivos do crime. O homem sempre busca respostas, até no mais escuro dos caminhos. Masao era um homem execrável, isso não era novidade, mas o que o teria motivado a se tornar um assassino? Tentar matar animais era uma coisa, mas pessoas? Pior ainda quando se tratava do próprio sangue. Assim, rodada após rodada de saquê, verificava-se as teorias mais absurdas, pois absurdo havia sido o crime.
Um forasteiro, que em silêncio dobrava um origami em um canto escuro do bar, manifestou-se pela primeira vez, tentando decifrar o enigma:
— Eu nasci no mesmo vilarejo que Masao, por isso eu sei de algo que talvez vocês desconheçam...
O bar, até então mergulhado em acaloradas discussões, esfriou em repentino silêncio. O forasteiro continuou a dobrar o papel e só parou quando deu asas a um tsuru. Diante do inusitado da situação, alguém se lembrou de perguntar:
— Quem é você?
— Sou um velho amigo de Masao — respondeu tranquilamente o forasteiro.
— Amigo? Desde quando aquele miserável tem amigos? — alguém duvidou.
— Se é mesmo amigo de Masao, você não é bem-vindo aqui — peitou outro.
Foi o início de uma nova rodada de discussões, acompanhadas pelo forasteiro com a mais absoluta indiferença. Enquanto isso, ele desdobrava calmamente o origami.
— Esperem! Silêncio! Que importa se este homem é amigo ou não do maldito Masao? O que importa agora é que ele sabe de algo que nós estamos curiosos em descobrir. Portanto, vamos ouvi-lo — disse o dono do bar, tomando o controle da situação.
— A vida de um homem é como uma folha de papel dobrada pela mão do destino – disse o estranho, redobrando o mesmo papel, agora, na forma de um sapo.
— Ora! Não me venha com tolices. Você conhece ou não o assassino?
— Se Masao é assassino, eu não sei. Não o conheci sob essa forma.
— Pois duvida? Se ele mesmo confessou, se apresentando ao juiz e declarando-se culpado? — desafiou um dos homens.
— Se não estão dispostos a ouvir o que tenho a dizer, devo me retirar agora...
— Não, espere! Diga o que sabe. Não iremos interferir, mesmo que o que tenha a nos contar nos aborreça. Ao menos, até que você termine a sua história...
— Masao quase matou o próprio pai... — começou o forasteiro.
— Estávamos certos! Desde o berço esse maldito era um oni, um diabo! Que mais se pode falar de um parricida?
— Eu disse que ele quase matou... ao tentar defender a mãe. Pois que o pai de Masao era um bêbado que o espancava todos os dias. Isso, Masao podia suportar, mas não suportava vê-lo agredir a mãe.
— Está tentando justificar a maldade de Masao com uma infância infeliz? — desdenhou alguém.
— Cale a boca e deixe o homem terminar. Depois discutiremos a questão, por ora, vamos ouvir — intercedeu novamente o dono do bar.
Acariciando o sapo de papel, o forasteiro continuou:
— Um dia, o inevitável aconteceu. Embriagado, o pai de Masao... matou a esposa. Foi nesse dia que Masao tentou matar o pai, para tentar defender a mãe, mas ele não conseguiu. Desde esse dia, ele nunca se perdoou. Odiou o pai pelo resto da vida e odiou ainda mais a si próprio por odiar o pai.
— Até eu odiaria meu pai, que há de mal nisso?
— Quantos de vocês, quando bêbados, já perderam o rumo? Quantos se desdobraram em atos inconsequentes, ofendendo quem amam nestes momentos de embriaguez? — o forasteiro esmagou o sapo de papel em suas mãos.
No bar, houve grande silêncio. Muitos já haviam cometido atos vergonhosos sob a influência do saquê.
— Não estou justificando nenhum crime, apenas estou dizendo que quando um homem escolhe um destino infeliz, vê a sua vida se desdobrar em uma existência ruim. Quantos de vocês, que um dia conheceram o velho Masao, tentaram se aproximar dele? Quem lhe ofereceu a mão?
— Mas ele não gostava de ninguém! Era um homem solitário por culpa dele mesmo — a justificativa era geral.
— Vocês estão certos. Foi ele mesmo quem se dobrou em um ser indesejado. Mas saibam que todos nós temos um poder muito grande em nossas mãos. Um poder de transformar a vida de outras pessoas. Não digo que moldamos o destino delas, mas, com certeza, temos participação em alguns contornos... Acredito que nós ajudamos a dar forma à vida de todos os que convivem conosco – o forasteiro desamassou o papel e o redobrou em um tsuru, que como o seu criador, bateu asas e dali partiu.
O bar ficou em silêncio por alguns minutos, até que alguém perguntou:
— Quem era mesmo aquele homem?
O forasteiro bateu à porta de uma casa de madeira. Ele havia chegado àquele endereço seguindo as notícias sobre os assassinatos. Uma senhora atendeu, o forasteiro se identificou.
— Naomi, seu tio-avô chegou.
A menina se esgueirou tímida, escondendo-se por trás das pernas da vizinha. Ainda não compreendia tudo o que havia se passado, e nunca haveria explicação para o horror da morte dos pais. O forasteiro disse:
— Naomi, minha querida. Sei que você não me conhece ainda e talvez nem queira conhecer, mas eu sou a sua família — dizendo isso, entregou o pássaro de papel para a menina.
Naomi pegou o tsuru, curiosa. Mesmo assustada, ela ainda assim era uma criança. Brincando com o pássaro de papel, Naomi perguntou:
— Foi o senhor quem fez?
— Sim, eu mesmo!
— O senhor me ensina a fazer mais um? Não quero que ele fique sozinho...
— Sim, Naomi... Ele não vai ficar sozinho... Naomi sorriu. No decorrer de um ano, a pequena menina já havia feito mil tsurus! Segundo a tradição, quem consegue fazer mil tsurus tem direito a fazer um pedido. Que pedido uma menina poderia ter?
— Tem certeza, Naomi?Sim, ela tinha certeza. Junto com o irmão de Masao, a pequena Naomi foi à prisão, visitar o avô, a quem ela nunca havia conhecido. Infelizmente, Masao não queria ver ninguém. Seu irmão intercedeu, tentando convencê-lo:
— Por que fez isso, Masao?
— Agora, já não faz mais diferença. Que importa o motivo do assassinato...
— O motivo que levou o seu genro a matar a sua filha não vem ao caso agora...
Muitos e muitos anos já haviam se passado, desde a última vez em que se viram. Mas mesmo depois de tanto tempo, Masao ainda não conseguia esconder nada do seu irmão mais novo. Lembrou-se da última vez em que o vira, antes de se isolar de todos. Naquela ocasião, Masao havia brigado feio com a filha e a esposa, o que causou a sua separação. O motivo era porque a filha queria se casar com um homem que se mostrava amável com todos, principalmente com a sogra, que aprovava a união. Infelizmente, apesar de todas as suas qualidades, ele tinha um grande defeito. Um defeito que Masao logo reconheceu, pois era o mesmo de seu pai — o ciúme doentio. O ciúme que leva primeiro à embriaguez do corpo, depois, da alma. Com certeza, assim como o pai de Masao amava a sua mãe, o novo genro amava a sua filha. O problema é que o ciúme exacerbado tende a massacrar o amor, e foi por infundado e insano ciúme que o genro resolveu envenenar a esposa e a filha, antes de se suicidar. Por milagre, a menina sobreviveu.
— Eu não queria que Naomi crescesse com o mesmo ódio com que eu cresci. O ódio ao meu pai me destruiu como pessoa e me levou por caminhos dos quais me envergonho profundamente. Pensei que enterraria esse ódio com o meu pai, mas eu o levei comigo. Tornei-me uma pessoa amarga, com uma vida amarga. Não pude enterrar minha esposa, pois havia me afastado tanto dela que seria o mesmo que ir ao funeral de uma desconhecida. Não fiz as pazes com a minha filha e não vi a minha neta crescer. Também me afastei de você, meu irmão. O ódio foi o meu único companheiro e continua sendo até hoje... Minha neta não merecia o mesmo destino que o meu.
— Masao, você continua o mesmo de sempre. O mesmo Masao que me defendia quando nosso pai voltava embriagado. Quantas vezes você se interpôs, me protegendo com seu corpo e levando a surra em meu lugar? Novamente, você lançou seu corpo ao castigo para defender outra pessoa. Não compreendo por que você se condena a este infeliz destino.
— Deixe-me agora. Sou eu quem não entendo por que você trouxe Naomi aqui. Sei que ela deve me odiar por ter matado os seus pais. Eu posso suportar tudo, a prisão e a solidão, mas não sei se poderei suportar o olhar de Naomi me condenando.
— Masao, por favor...
— Eu não a quis conhecer antes e muito menos quero agora...
— Masao, eu sei que você sempre a quis conhecer.
— Ora, que quer que eu faça? Estou preso aqui, que adianta conhecê-la agora? É tarde demais...
Nesse instante, uma menina adentrou no pequeno cubículo em que se dava a reunião entre os irmãos. Masao se contorceu, escondendo o rosto com as mãos, envergonhado de ser visto naquela situação.
— Ditchan...
Foi a primeira vez que Masao ouviu aquela palavra: ditchan. Por mais que estivesse envergonhado, não pôde deixar que suas mãos caíssem para que ele pudesse ver a menina que o chamava de vovozinho. Naquele instante, o seu coração voltou a bater.
— Ditchan... Todo mundo me disse que o senhor é muito mau.
A respiração de Masao ficou suspensa. Não conseguia respirar. Era agora que a menina iria lhe dizer que o odiava. O que ele não compreendia era por que o irmão a havia trazido até ali. Mas se era inevitável, que o golpe viesse rápido e que tudo acabasse ali, naquele instante.
— Sim, é verdade. Sou um homem muito mau.
A menina carregava, em suas mãozinhas, cordões entrelaçados com mil tsurus de papel, que estendeu ao avô.
— Vovô, eu fiz esses tsurus para o senhor...
— Por quê?
— Vovô, o senhor sabia que quem consegue fazer mil tsurus pode fazer um pedido?
— Isso é besteira — disse Masao, agindo como de costume, afastando as pessoas que eram gentis com ele, apenas pelo fato de pensar que não merecia o amor delas.
— Não é não — respondeu Naomi — O meu pedido foi atendido...
— O que você pediu? — perguntou Masao, incrédulo.
— Eu pedi para que o senhor se tornasse uma pessoa boa... E eu sei que o senhor é uma pessoa boa agora, porque eu sinto isso aqui – disse Naomi, com a mão no peito.
Ironia dos desdobramentos da vida: preso como estava, pela primeira vez, Masao sentiu-se livre. A menina Naomi, dobrando mil pássaros de papel, conseguiu dar nova forma à vida de Masao, que após um longo tempo caído no chão, voou feliz, com as asas de sua neta.
* * * * *

3 comentários:

  1. Nooossa foi profundo! adorei a história, infelizmente nos "seres humanos" dobramos constantemente passo a passo nossas vidas, mas quando estamos errados não paramos para desdobrar o que fizemos por causa da arrogância, ciúmes, ignorância, egoismo. Portanto assim podendo dobrar novamente para que tornemos melhores.

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    1. Jean, muito obrigado pelo comentário. Abraço forte!

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  2. Que bom revisitar esse conto. Hoje, estava participando de uma live com a Thais Kato, tentando dobrar um origami, e comentei sobre este conto, publicado posteriormente no livro "Contos do Sol Nascente" (JBC). A premiação pela ALAMI foi muito importante para mim. E, posteriormente, a resenha maravilhosa de Roque Weschenfelder foi um grande incentivo. Muito obrigado a todos da ALAMI. Abraços!

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